BIRMINGHAM – Quando um fotógrafo capturou recentemente o secretário do Tesouro dos EUA, Scott Bessent, lendo uma mensagem de texto na Assembleia Geral das Nações Unidas, a imagem revelou inadvertidamente a magnitude da crise agrícola cada vez mais profunda nos Estados Unidos.
“Ontem, socorremos a Argentina”, dizia a mensagem, aparentemente enviada pela secretária da Agricultura, Brooke Rollins. “Em troca, os argentinos estão removendo suas tarifas de exportação sobre grãos, reduzindo seus preços e vendendo uma grande quantidade de soja para a China, num momento em que normalmente nós [EUA] estaríamos vendendo para a China.”
Quarenta e oito horas após a decisão da Argentina de eliminar os impostos de exportação sobre produtos de grãos, os compradores chineses adquiriram cerca de 1,3 milhão de toneladas de soja argentina – justamente quando os agricultores americanos iniciavam sua temporada de colheita sem nenhum pedido da China. O aumento nas exportações argentinas fez com que os preços da soja caíssem, dando à China ainda mais vantagem sobre os Estados Unidos.
Esta não é só uma história sobre disputas comerciais ou fluxos de commodities. É um estudo de caso sobre como as políticas comerciais do presidente dos EUA, Donald Trump, que priorizam as tarifas, interpretam de forma fundamentalmente errada a economia da cadeia de suprimentos do século 21 e como choques temporários podem desencadear mudanças estruturais permanentes.
Embora a narrativa convencional apresente a soja como moeda de troca entre EUA e China, ela não é um bem de consumo final. A soja é um insumo intermediário dentro duma cadeia de abastecimento agroindustrial fortemente integrada. As instalações de esmagamento processam a soja para produzir ração animal e óleo, que, por sua vez, sustentam a produção pecuária e a segurança alimentar. Basta interromper um nó para que todo o sistema se reorganize – e nunca mais volte à sua forma anterior.
A China aprendeu essa lição do jeito mais difícil em 2004, quando comerciantes globais manipularam os preços da soja – elevando-os de US$ 540 para mais de US$ 750 por tonelada – e, em seguida, anunciaram safras abundantes que fizeram os preços despencarem para US$ 500, prendendo os processadores chineses em contratos de alto preço. Estudos acadêmicos estimam que cerca de 3 mil processadores de soja faliram, enquanto os comerciantes estrangeiros ganharam controle de 70% a 85% da capacidade de esmagamento da China.
A China não perdeu só dinheiro; perdeu o controle sobre um elo crítico em sua cadeia de abastecimento de segurança alimentar. Em resposta, construiu vastas reservas estratégicas por meio de sua empresa estatal de grãos, a Sinograin, protegeu suas usinas de esmagamento estatais restantes e começou a investir pesadamente na infraestrutura agrícola da América do Sul.
As tarifas de Trump em 2018 aceleraram esses esforços de diversificação. O investimento chinês já havia financiado os portos, ferrovias e redes logísticas que agora transportam a soja sul-americana de forma eficiente para os mercados asiáticos, garantindo que, quando essas tarifas interromperam o comércio entre os EUA e a China, a infraestrutura necessária já estivesse em funcionamento.
Como resultado, o que antes poderia levar duas décadas para se desenrolar, se desenrolou em apenas sete anos. Entre 2011 e 2018, cerca de 60% de todas as exportações de soja dos EUA foram para a China. Mas, em 2024, a participação do Brasil nas importações chinesas de soja subiu para 71%, ante apenas 2% na década de 1990.
A guerra comercial atual, que completou a reorganização iniciada em 2018, reflete o atraso de resposta inerente às cadeias de abastecimento globais. Quando os agricultores brasileiros e argentinos expandiram a produção, essa capacidade não desapareceu com a suspensão das tarifas. As usinas chinesas estabeleceram relações duradouras com fornecedores sul-americanos, enquanto os portos e as redes logísticas foram otimizados para as rotas Brasil-China. Os preços globais da soja, antes centrados nas colheitas norte-americanas, agora seguem o calendário agrícola da América do Sul.
A lógica econômica por trás dessa mudança é simples: compradores concentrados como a China podem diversificar fontes de abastecimento com muito mais facilidade do que vendedores dispersos como os agricultores americanos podem achar mercados equivalentes. A China importa de 100 milhões a105 milhões de toneladas de soja por ano, superando todos os outros importadores.
Como a China é responsável por 60% do comércio global de soja, os agricultores dos EUA não têm como replicar essa demanda noutro lugar. Enquanto a China já enfrentou uma dependência excessiva de um único fornecedor, os agricultores dos EUA agora estão pagando o preço de depender de um único comprador. Nenhuma combinação de mercados menores pode compensar a perda de seu maior cliente, que investiu em alternativas viáveis.
Tudo isso ressalta a incoerência da atual postura comercial dos Estados Unidos. O país forneceu à Argentina cerca de US$ 20 bilhões em ajuda financeira para evitar que ela se aproximasse ainda mais da órbita da China; a Argentina respondeu eliminando os impostos de exportação, tornando instantaneamente sua soja mais competitiva antes de vendê-la à China.
Enquanto isso, os agricultores americanos, que receberam cerca de US$ 28 bilhões em subsídios entre 2018 e 2019, viram sua participação no mercado evaporar e agora se preparam para outro resgate financeiro. Como afirmou recentemente um porta-voz da Associação de Soja de Illinois: “O que realmente queremos é ter boas relações com nossos parceiros comerciais. Queremos mercados. Não queremos resgates financeiros”. No entanto, os EUA continuam a subsidiar seus agricultores e financiar seus concorrentes.
Essa dinâmica expõe uma falha mais profunda na forma como os EUA abordam os mercados globalmente interconectados. As tarifas podem proteger as indústrias de bens finais com altos custos de troca, mas são desastrosas para os bens intermediários em cadeias de abastecimento flexíveis, nas quais os compradores podem facilmente substituir os elos. Evidentemente, a política comercial dos EUA não reconhece essa distinção essencial.
As semelhanças com a política comercial do Reino Unido após o Brexit são impressionantes. As estratégias de ambos os países refletem uma retórica grandiosa sobre soberania e influência, ignorando a complexidade da adaptação das cadeias de abastecimento às perturbações. Ao tratarem o comércio como bilateral, quando este é inerentemente multilateral, superestimam sua indispensabilidade e subestimam custos de ajustamento.
Minha própria pesquisa sobre o comércio pós-Brexit revela que as perturbações se intensificam em vez de diminuírem com o tempo – 2023 apresentou quedas comerciais mais pronunciadas do que nos anos anteriores –, indicando mudanças estruturais mais profundas, e não um ajuste temporário. O Reino Unido se desvinculou das cadeias de valor da UE para bens de consumo, mas continua dependente da UE para bens intermediários e de capital.
Assim como os agricultores americanos que perderam o acesso ao mercado chinês, a parte que inicia a perturbação enfrenta uma vulnerabilidade assimétrica: é mais fácil para os compradores com opções (a UE e a China) reorganizarem suas fontes de abastecimento do que para os vendedores (o Reino Unido e os EUA) encontrarem mercados alternativos equivalentes.
A saga da soja oferece uma lição mais ampla. No comércio moderno, o controle sobre os nós da cadeia de abastecimento é mais importante do que o controle sobre as matérias-primas. A China perdeu o controle de sua capacidade de esmagamento em 2004 e passou duas décadas garantindo que nunca mais seria tão vulnerável.
Os EUA agora estão perdendo o acesso ao seu maior mercado de exportação porque o governo não compreendeu que, uma vez que as cadeias de abastecimento se reorganizam, elas não revertem só porque as tarifas mudam.
Quando Bessent leu aquela mensagem de texto, o resultado já estava claro. Ele estava, na verdade, lendo o obituário de uma relação comercial que anos de políticas equivocadas desmantelaram de modo sistemático. A questão agora não é se ela pode ser reconstruída, mas se os formuladores de políticas americanas entendem por que isso não é possível.
Tradução por Fabrício Calado Moreira


